Código Penal Comentado Art. 1°
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DIREITO PENAL COMENTADO
Livancler de Oliveira
8/23/20259 min read
Art. 1° - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.
Ninguém pode ser preso ou punido por fazer algo que não está escrito na lei como crime. Ou seja, se a lei não diz que uma atitude específica é crime, essa pessoa não pode ser considerada culpada, mesmo que outras pessoas achem a atitude errada ou imoral. Além disso, para que uma pessoa seja punida, a lei que define o crime já deve existir antes da pessoa fazer aquilo. Não dá para criar uma lei depois que o fato aconteceu e usar essa nova lei para punir alguém. Isso seria injusto. Por exemplo: Se hoje você fizer algo que não é crime, e amanhã sair uma lei dizendo que essa coisa agora é crime, você não pode ser punido porque, na época em que fez, aquilo não era proibido. Esse princípio existe para proteger as pessoas e evitar abusos. Assim, todo mundo sabe de antemão o que pode ou não fazer, e o governo não pode inventar punições para algo que não está na lei. Resumindo: só é crime o que está escrito na lei, e essa lei precisa existir antes da pessoa cometer o ato. Vejamos a história de Jhonatan um jovem advogado em início de carreira:
A Prisão Injusta:
Curitiba amanhecia como de costume: cinzenta e com uma chuva fina que parecia nunca parar. Na Praça Rui Barbosa, o caos habitual ganhava contornos de irritação. Pessoas se espremiam embaixo de guarda-chuvas gastos, em uma dança de empurra-empurra para alcançar seus destinos. Entre elas, Jhonatan lutava para manter o terno seco enquanto apressava o passo. Jovem, de 28 anos, ele carregava no rosto a expressão de quem sempre estava correndo contra o tempo. Seus olhos castanhos escuros estavam fixos no relógio do pulso, e o cabelo preto, cuidadosamente penteado naquela manhã, começava a perder a batalha contra o vento. Era um advogado iniciante, determinado a fazer seu nome na área criminal, mas ainda aprendendo a equilibrar ambição e organização. Chegando ao ponto de ônibus, ele viu a longa fila serpenteando pela calçada molhada e suspirou. Não podia perder aquela reunião com um cliente importante. Ajustou a gravata vermelha, um presente da mãe para dar sorte, e tomou uma decisão impensada: avançou alguns lugares na fila.
— Ei, rapaz! Acha que tem mais direito que os outros? — gritou um senhor idoso, o rosto avermelhado, com uma bengala que parecia mais um cetro de autoridade.
Jhonatan virou-se para encarar o senhor. Ele parecia ter uns 70 anos, o tipo de pessoa que fazia questão de seguir regras à risca, mesmo para algo tão trivial quanto uma fila.
— Desculpe, senhor, foi um impulso. Estou muito atrasado — disse Jhonatan, tentando apaziguar a situação.
Mas o murmúrio ao redor crescia, e as pessoas começaram a lançar olhares de reprovação. Foi nesse momento que o policial apareceu. Alto, de farda impecavelmente ajustada, ele parecia alguém que adorava exercer sua autoridade, mesmo em situações banais.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou ele, a voz firme, com as mãos pousadas no cinto.
— Esse rapaz furou a fila! Está achando que é mais esperto que todo mundo! — acusou o idoso, agora com a plateia ao seu favor.
Jhonatan tentou argumentar:
— Foi um erro, admito, mas não é nada grave. Tenho uma reunião importante e só quis...
— Você está preso — interrompeu o policial, pegando Jhonatan pelo braço com um aperto desnecessariamente forte.
— Preso? Por furar fila? Isso não é crime! — protestou Jhonatan, agora irritado.
O clique das algemas foi o som que encerrou o debate. Enquanto era levado pela praça, ele sentia os olhares curiosos e incrédulos das pessoas. Uma mistura de vergonha e indignação queimava em seu peito.
A chuva ainda caía em Curitiba quando Jhonatan foi escoltado pelo policial em direção à viatura estacionada na esquina da Praça Rui Barbosa. As algemas nos pulsos faziam o metal frio morder sua pele, e cada passo parecia mais pesado que o anterior. A humilhação pública era evidente nos olhares das pessoas que se aglomeravam para assistir ao desfecho do incidente. O policial, que se apresentara como Sargento Moura, abriu a porta traseira do veículo e, com um gesto brusco, indicou que Jhonatan entrasse.
— Vamos, advogado. Espero que saiba que sua carteirada não vai funcionar aqui — disse Moura com um tom carregado de sarcasmo, fechando a porta com força logo em seguida.
Jhonatan respirou fundo, tentando manter a calma. Ele sabia que argumentar naquele momento seria inútil. A viatura partiu, cortando as ruas molhadas e estreitas do centro da cidade. O silêncio dentro do carro era pesado, quebrado apenas pelo som do limpador de para-brisas lutando contra a chuva incessante.
Depois de alguns minutos, Jhonatan decidiu falar, sua voz firme, mas controlada.
— Sargento Moura, você sabe que está cometendo um erro. Não há base legal para essa prisão.
Moura, que estava ao volante, não desviou o olhar da estrada, mas seu maxilar tenso denunciava que ele ouvira.
— Escuta aqui, doutor. Furar fila pode não ser crime, mas você causou uma confusão. Minha obrigação é manter a ordem.
Jhonatan apoiou as algemas no encosto do banco à sua frente, inclinando-se ligeiramente.
— Manter a ordem é uma coisa, sargento. Abusar da autoridade é outra. Estou algemado por algo que, no máximo, seria uma infração administrativa, e ainda assim duvido que exista um artigo sequer que sustente isso.
O policial que estava no banco do passageiro, mais jovem e aparentemente menos experiente, soltou uma risada nervosa.
— Você é bem ousado para alguém algemado, hein? — comentou, olhando para Jhonatan pelo retrovisor.
Jhonatan não perdeu a compostura.
— Não é ousadia. É conhecimento jurídico. E, sinceramente, eu esperava que os responsáveis por aplicar a lei a conhecessem tão bem quanto eu.
O sargento Moura bufou, apertando o volante.
— Você acha que pode nos ensinar a fazer nosso trabalho? Não esqueça que quem está preso aqui é você.
— E isso diz mais sobre o sistema do que sobre mim, não acha? — retrucou Jhonatan, com um tom calmo, mas incisivo.
A viatura parou em um semáforo. Moura finalmente virou-se para encarar Jhonatan, os olhos carregados de irritação.
— Você tem sorte que eu não gosto de confusão, doutor. Se dependesse de mim, você passaria uma noite inteira pensando no que fez.
Jhonatan ergueu as sobrancelhas, mantendo um olhar firme.
— E se dependesse de mim, policiais como você receberiam treinamentos melhores. Não quero ser desrespeitoso, mas é exatamente essa postura que faz as pessoas perderem a confiança na polícia.
O semáforo abriu, e a viatura retomou o caminho. O silêncio voltou a reinar, mas desta vez era diferente. O jovem policial evitava trocar olhares, enquanto Moura parecia refletir, embora sua expressão permanecesse dura.
Chegando à delegacia, Moura estacionou o carro bruscamente e desceu, abrindo a porta traseira. Ele não disse uma palavra enquanto ajudava Jhonatan a sair. O advogado ajeitou o paletó molhado e encarou o sargento antes de entrar no prédio.
— Obrigado pela carona, sargento. Espero que esta experiência lhe ensine algo sobre limites — disse Jhonatan, deixando no ar uma mistura de ironia e determinação.
O sargento Moura nada respondeu, mas por um breve momento desviou o olhar, como se evitasse encarar a verdade que Jhonatan acabara de expor.Dentro da delegacia, Jhonatan sabia que o verdadeiro confronto estava apenas começando. Mas ele já havia provado a si mesmo que estava preparado para enfrentá-lo.
A sala da delegacia tinha um ar abafado, impregnado pelo cheiro de café velho e papel úmido. O delegado Carlos Henrique, um homem de meia-idade, conhecido por sua retidão e paciência, estava sentado atrás de sua mesa. Ele observava o policial Sargento Moura e o jovem soldado Almeida com um olhar sério, enquanto Jhonatan, agora sentado em uma cadeira próxima, permanecia em silêncio, mas atento.O delegado ajustou os óculos no nariz e respirou fundo, pegando o boletim de ocorrência que Moura havia preparado. Após alguns minutos de leitura, ele fechou o papel e olhou para os policiais com uma expressão incrédula.
— Moura, Almeida, vocês estão me dizendo que trouxeram esse rapaz para cá... porque ele furou uma fila? — perguntou o delegado, colocando o boletim sobre a mesa.
Sargento Moura tentou sustentar a postura firme, mas a voz saiu defensiva.
— Senhor, a situação estava ficando fora de controle. As pessoas estavam irritadas, e ele desrespeitou a ordem pública. Achei melhor agir antes que a confusão aumentasse.
O delegado balançou a cabeça lentamente e cruzou as mãos sobre a mesa.
— Vamos começar do princípio. Vocês conhecem o artigo 1º do Código Penal? Soldado Almeida piscou, desconfortável, e olhou para Moura, que respondeu com hesitação: — Claro, delegado. É aquele que diz que não há crime sem lei... algo assim. Carlos Henrique se ajeitou na cadeira, inclinando-se para frente.
— Certo, vamos detalhar isso. O artigo 1º estabelece o princípio da legalidade, que é uma das bases do nosso sistema penal. Ele diz, de forma clara e direta, que ‘não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.’ Agora, vamos traduzir isso para a prática.
Ele gesticulou para o boletim de ocorrência.
— O que temos aqui é uma descrição de um ato de furar fila. Moura, onde está escrito, em qualquer lei penal, que furar fila é um crime?
Moura hesitou, coçando a nuca.
— Bem... não sei de cabeça, senhor, mas é errado! As pessoas estavam incomodadas. É uma questão de respeito e ordem pública.
Carlos Henrique ergueu a mão para interrompê-lo.
— Errado, sim. Antiético? Provavelmente. Mas crime? Não. E sabe por quê? Porque o Direito Penal não serve para punir tudo o que é considerado errado. Ele é uma ferramenta de última instância, usada apenas para condutas que a sociedade decidiu, por meio da lei, que são graves o suficiente para merecer uma sanção penal.
O soldado Almeida, agora visivelmente confuso, arriscou uma pergunta. — Delegado, mas se ele causou confusão, isso não seria pelo menos desordem pública? O delegado sorriu levemente, satisfeito com a dúvida.
— Boa pergunta, Almeida. Vamos analisar. O crime de desordem pública, conforme descrito no Código Penal, exige que haja uma perturbação da ordem pública, algo que ameace a paz social em larga escala. Por exemplo, um tumulto em um protesto, uma invasão em massa a um espaço público. Não é o caso de um indivíduo furando uma fila, ainda que isso irrite as pessoas ao redor.
Ele fez uma pausa, olhando diretamente para Moura.
— Moura, você conhece o princípio da intervenção mínima?
O sargento balançou a cabeça negativamente, sem dizer nada. O delegado continuou.
— Esse princípio estabelece que o Direito Penal só deve ser usado quando absolutamente necessário. Nós, como agentes da lei, não podemos transformar cada atitude reprovável em um crime. Imagine o caos se começássemos a prender pessoas por furar fila, não ceder lugar no ônibus ou falar alto no cinema. Isso banalizaria o sistema penal e colocaria uma carga insustentável sobre o judiciário.
Moura franziu a testa, tentando absorver as palavras.
— Então, delegado, está dizendo que agimos errado? Que não deveríamos ter trazido ele para cá?
Carlos Henrique suspirou.
— Sim, Moura. Vocês erraram. E mais do que isso: ao prendê-lo, cometeram um abuso de autoridade. Se o senhor Jhonatan quiser, pode processá-los por isso. Vocês precisam entender que o Direito Penal não é uma ferramenta para resolver pequenos conflitos. Ele existe para proteger bens jurídicos importantes, como a vida, a liberdade e o patrimônio. Não para impor boas maneiras.
Jhonatan, que até então observava em silêncio, interveio.
— Delegado, se me permite, acho importante acrescentar que o desconhecimento do princípio da legalidade por parte de muitos agentes da lei é o que leva a situações como esta. Eu entendo que o trabalho deles é difícil, mas não podemos permitir que a ignorância sobre os limites da lei prejudique a liberdade das pessoas.
Carlos Henrique assentiu.
— Exatamente. Moura, Almeida, tomem isso como uma lição. Conhecer a lei é essencial para aplicá-la corretamente. E lembrem-se: nós estamos aqui para proteger as pessoas, não para subjugá-las.
Moura abaixou a cabeça, claramente constrangido. Almeida, por sua vez, parecia mais interessado, como se estivesse processando um aprendizado importante.
— Entendido, delegado. Vamos prestar mais atenção a isso — respondeu Moura, com um tom mais humilde.
O delegado se recostou na cadeira e olhou para Jhonatan.
— Senhor Jhonatan, suas algemas serão retiradas imediatamente. E, em nome da polícia, peço desculpas pelo ocorrido.
— Obrigado, delegado. Fico satisfeito em ver que há profissionais como o senhor que entendem a importância de proteger o Estado de Direito.
O delegado fez um leve aceno de cabeça, enquanto o soldado Almeida soltava as algemas de Jhonatan. A sala ficou em silêncio por um momento, mas todos sabiam que aquela conversa não seria esquecida tão cedo. Para Moura e Almeida, foi uma lição importante. Para Jhonatan, foi a reafirmação de que o conhecimento jurídico era sua maior arma contra a injustiça.
Jhonatan foi a reafirmação de que o conhecimento jurídico era sua maior arma contra a injustiça.


