Código Penal Comentado Art. 2°
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DIREITO PENAL COMENTADO
Livancler de Oliveira
8/23/202521 min read
Art. 2º - Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
O Artigo 2º do Código Penal fala sobre como as mudanças nas leis penais devem ser aplicadas no tempo, garantindo que ninguém seja prejudicado por alterações na lei feitas depois do crime. Ele estabelece duas regras principais:
Lei que piora não volta no tempo:
Se criam uma nova lei que aumenta a pena ou transforma algo em crime, essa lei só vale para quem fizer aquilo depois de ela começar a valer. Quem já fez antes não pode ser punido ou ter sua situação piorada por causa da nova lei.
Lei que melhora vale para trás:
Se aparece uma nova lei que diminui a pena ou diz que aquilo não é mais crime, ela pode ajudar quem foi condenado antes dessa mudança. Mesmo que a pessoa já esteja presa, ela pode pedir para o juiz aplicar a nova lei. Vamos acompanhar a historia de edina e seus desdobramentos.
Redenção pela Justiça: A Jornada de Edina e o Poder do Artigo 2º
Era uma manhã fria e nebulosa em Curitiba. Edina, uma mulher de 39 anos, acordava para mais um dia na Penitenciária Feminina. Enquanto se preparava para enfrentar mais uma rotinamonótona, sua mente viajava para os caminhos que a levaram até ali — caminhos que começaram em sua cidade natal, Ponta Grossa. Edina cresceu acreditando que Verônica, a esposa de seu pai Mariano, era sua mãe. Mariano era um homem de presença imponente, dono de um ferro-velho que sustentava a família com o trabalho árduo de desmontar carros e vender peças usadas. Ele era dedicado, mas seu temperamento explosivo mantinha todos em alerta. Verônica, por sua vez, administrava a casa com mãos firmes, mantendo a ordem entre os filhos e assumindo as responsabilidades domésticas. Aos 13 anos, a vida de Edina virou de cabeça para baixo. Durante o intervalo na escola, uma mulher apareceu inesperadamente no portão, olhando para Edina com lágrimas nos olhos. Era Terezinha, sua mãe biológica, uma figura que Edina nem sabia que existia.
— Edina, sou eu... sua mãe — disse a mulher, com a voz embargada pela emoção.
A revelação foi um choque. Até aquele momento, Edina acreditava que Verônica era sua mãe de sangue. Terezinha explicou que havia fugido para São Paulo quando Edina ainda era um bebê. Casada com Mariano aos 12 anos, ela suportou anos de medo e submissão até finalmente criar coragem para escapar. Sem conseguir levar Edina consigo, Terezinha passou anos reconstruindo a vida em São Paulo, carregando a culpa por ter deixado a filha para trás. A visita de Terezinha desestabilizou Edina. Por que sua mãe havia demorado tanto para voltar? Por que ela fora deixada com Mariano e Verônica? As perguntas não tinham respostas fáceis, e Edina passou a carregar uma mistura de mágoa e curiosidade em relação a Terezinha, ao mesmo tempo que via Mariano e Verônica com novos olhos. Aos 16 anos, Edina tentava equilibrar os estudos e as tarefas no ferro-velho de Mariano. O trabalho era duro, mas o ferro-velho era a base da economia da família. Mariano tinha clientes fiéis e um jeito astuto para negociar peças. Edina ajudava na organização e na administração, enquanto Verônica continuava cuidando da casa e dos irmãos mais novos. Eidine, o irmão mais velho de Edina, já trabalhava no ferro-velho com Mariano. Desde cedo, Eidine assumiu responsabilidades maiores, aprendendo o ofício do pai e sonhando em um dia tomar conta do negócio. Ele era uma figura protetora para Edina, alguém em quem ela podia confiar quando as coisas ficavam difíceis.
O dia em que a polícia chegou ao ferro-velho marcou a família para sempre. Mariano foi acusado de receptação, suspeito de comprar cinco carros roubados para desmontá-los e revender as peças. Apesar de alegar inocência, as provas encontradas no local eram esmagadoras, e ele foi preso. A ausência de Mariano abalou profundamente a família. Com Mariano na prisão, Eidine assumiu a administração do ferro-velho. Embora jovem, ele carregava o negócio com seriedade e dedicação, tentando preservar a única fonte de renda da família. Enquanto isso, Verônica continuava a cuidar da casa e dos irmãos, mantendo a estrutura familiar intacta apesar das dificuldades.
Edina, por sua vez, abandonou os estudos e começou a trabalhar em um mercado local para ajudar nas despesas. Os dias eram longos e cansativos, mas ela fazia o possível para contribuir. Apesar disso, a sensação de injustiça em relação à prisão de Mariano nunca a deixou. Embora soubesse que o pai tinha cometido erros, Edina acreditava que ele havia sido empurrado pelas circunstâncias.
Aos 18 anos, Edina decidiu buscar uma vida melhor em Curitiba. Com o apoio de Verônica e Eidine, ela conseguiu se mudar e encontrar trabalho como técnica de enfermagem. A profissão trouxe propósito à sua vida e uma chance de recomeçar. Enquanto trabalhava e reconstruía seu futuro, Edina mantinha contato com a família em Ponta Grossa. Verônica continuava administrando o lar, enquanto Eidine mantinha o ferro-velho funcionando contra todas as adversidades. Edina também falava ocasionalmente com Terezinha, que ainda vivia em São Paulo. Embora tentasse construir uma relação com a mãe biológica, a distância emocional entre elas permanecia. As mágoas e as perguntas não resolvidas criavam um abismo difícil de superar.
Durante a pandemia, o lado compassivo de Edina falou mais alto. Amigos, vizinhos e até pacientes começaram a pedir ajuda. Muitos não tinham condições de comprar medicamentos controlados, e Edina, querendo aliviar o sofrimento alheio, começou a compartilhar ansiolíticos e analgésicos que conseguia guardar. O que ela via como um ato de bondade logo se transformaria em um pesadelo.
A manhã era abafada, e o céu de Curitiba estava encoberto por nuvens cinzentas. Edina havia acabado de preparar o café quando ouviu batidas fortes na porta. Não eram batidas comuns; o som era grave e insistente, fazendo o coração dela disparar. Ela largou a xícara e foi até a porta, já com uma sensação ruim no peito.
Ao abrir, foi surpreendida por dois policiais uniformizados, com feições sérias. Atrás deles, outros dois agentes aguardavam próximos a uma viatura.
— Edina da Silva? — perguntou o policial da frente, segurando uma pasta de documentos. — Sim, sou eu — respondeu, a voz hesitante. — Aconteceu alguma coisa?
— Temos um mandado de busca e apreensão e outro de prisão contra a senhora. A senhora está sendo investigada por tráfico de drogas.
Edina ficou paralisada. O que ele acabara de dizer não fazia sentido.
— Tra... tráfico? Isso deve ser um engano! Eu sou técnica de enfermagem! Não vendo drogas, não faço nada ilegal! — disse, enquanto o desespero começava a tomar conta.
— Recebemos denúncias e temos provas de que a senhora compartilhou medicamentos controlados de forma irregular — respondeu o policial, enquanto mostrava os documentos. — Isso é considerado tráfico de drogas, conforme a Lei 11.343/2006. Precisamos entrar para realizar a busca.
Edina tentou argumentar, mas a voz dela tremia.
— Eu nunca vendi nada! Apenas ajudei pessoas que não podiam pagar por consultas, que estavam em crise. Isso é crime agora? Ajudar pessoas?
O policial manteve a postura profissional, mas havia um tom mais brando em sua voz.
— Eu entendo, senhora. Mas compartilhar medicamentos controlados, mesmo que gratuitamente, sem autorização, é uma infração grave segundo a lei. Não estamos aqui para discutir as intenções, mas para cumprir o mandado.
Dois dos policiais entraram na casa e começaram a revirar gavetas, armários e estantes. Edina os seguia, tentando explicar.
— Por favor, isso não pode estar acontecendo! Esses remédios... Eu só os guardei para ajudar quem precisava! Não tem nada de tráfico aqui! — As palavras saíam rápidas, quase como um desabafo desesperado.
Em poucos minutos, os policiais encontraram uma pequena caixa com frascos de ansiolíticos e analgésicos controlados. Um dos agentes levantou a caixa para o colega.
— Aqui estão — disse ele, enquanto a entregava ao superior.
O oficial se virou para Edina, que agora chorava.
— Senhora, esses medicamentos estão listados como controlados pela Anvisa. A posse deles sem prescrição já é irregular. A denúncia contra a senhora também inclui registros de pessoas que confirmaram ter recebido esses medicamentos.
Edina tentou se defender, as lágrimas escorrendo.
— Eu não vendi nada! Elas estavam desesperadas! Era só para ajudar! Meu trabalho é cuidar das pessoas, eu jamais faria algo para prejudicar alguém...
O policial colocou as mãos nos ombros de Edina, tentando acalmá-la.
— Senhora, eu sei que a situação é difícil, mas precisamos seguir o protocolo. Por favor, coloque as mãos para trás. Vamos levar a senhora à delegacia.
— Isso não é justo... — murmurou Edina, enquanto as algemas eram colocadas em seus pulsos. Ela sentiu o metal frio apertar seus punhos, a sensação de humilhação se misturando ao desespero.
Enquanto era escoltada até a viatura, os vizinhos começaram a se reunir do lado de fora, cochichando e olhando. Edina abaixou a cabeça, tentando evitar os olhares. Naquele momento, tudo que ela conseguia pensar era em sua família, em como eles lidariam com aquilo. Como explicaria para Verônica, para Eidine, ou até mesmo para Terezinha? Antes de entrar na viatura, ela se virou para o policial mais uma vez, em um último apelo: — Por favor, acredite em mim. Eu nunca quis fazer nada errado. Só queria ajudar... O policial fez uma pausa, respirou fundo e respondeu:
— Não cabe a mim julgar, senhora. O que posso dizer é que tudo isso será analisado no tribunal. Apenas faça sua parte e conte sua história.
As portas da viatura se fecharam, abafando o som dos cochichos dos vizinhos e deixando Edina sozinha com seus pensamentos. Era como se sua vida inteira tivesse desmoronado em questão de minutos. Ao chegar a delegacia Edina foi conduzida pelos policiais através de um corredor estreito, até uma sala simples com uma mesa metálica no centro, duas cadeiras e uma pilha de papéis. O som das vozes ecoava pelo lugar, misturado ao barulho distante de telefones tocando e passos apressados. Edina sentia os olhos de curiosos sobre ela enquanto era escoltada para a sala. Apesar do cansaço e do medo, tentava manter a cabeça erguida. Logo, o delegado entrou. Era um homem de expressão séria, mas cansada, com o jaleco levemente desabotoado e uma pilha de processos debaixo do braço. Ele se sentou à mesa e encarou Edina por alguns segundos antes de começar.
— Boa tarde, senhora Edina. Meu nome é Delegado Costa. Vou conduzir o auto de prisão em flagrante e ouvir seu depoimento. A senhora sabe por que está aqui? — perguntou, folheando os papéis à sua frente.
Edina respirou fundo, ainda tentando entender o que estava acontecendo.
— Eles me prenderam por tráfico... Mas isso é um engano. Eu não vendo drogas. Eu sou técnica de enfermagem, ajudo as pessoas. Só isso.
O delegado fez um breve sinal para o escrivão, que começou a registrar a declaração. Ele ajustou os óculos e inclinou-se levemente para frente.
— Vamos esclarecer os fatos, então. Segundo o que consta no mandado de busca e na denúncia, a senhora estava em posse de medicamentos controlados sem prescrição, certo? Esses medicamentos foram entregues a terceiros, correto?
Edina apertou as mãos no colo, tentando organizar seus pensamentos.
— Sim... Mas eu nunca vendi nada, senhor delegado. Essas pessoas não tinham dinheiro para comprar remédios, estavam desesperadas. Eu só queria ajudar. Alguns eram meus vizinhos, outros pacientes que eu conhecia. Eles não tinham outra saída.
O delegado manteve o tom neutro, mas seu olhar demonstrava curiosidade.
— Entendo. Mas a senhora sabe que, de acordo com a legislação, fornecer medicamentos controlados sem autorização é considerado tráfico de drogas, ainda que sem intenção de lucro. A Lei 11.343/2006 é bem clara nesse ponto.
Edina levantou a cabeça, tentando conter as lágrimas.
— Delegado, eu sei que errei. Talvez tenha sido imprudente. Mas o senhor entende como é ver uma pessoa em crise, chorando, pedindo ajuda, e não fazer nada? Eu tinha esses remédios guardados, não usava mais. Achei que estava fazendo algo bom. Nunca passou pela minha cabeça que isso fosse um crime.
O delegado suspirou, tirando os óculos e esfregando os olhos por um momento.
— Edina, eu não estou aqui para julgar suas intenções. Meu trabalho é garantir que os fatos sejam registrados e que o processo siga conforme a lei. Vou ser franco com você: sua situação é complicada. Temos medicamentos apreendidos e depoimentos de pessoas que receberam esses remédios. Isso é suficiente para configurar o crime de tráfico. A questão da intenção será analisada pelo judiciário.
Ela balançou a cabeça em negação, o desespero estampado em seu rosto.
— Mas eu sou enfermeira! Eu cuido das pessoas! Isso não é tráfico! Não é justo que me tratem como uma criminosa... Delegado, por favor, me ajude.
O delegado manteve a postura séria, mas sua voz ficou um pouco mais suave.
— Eu entendo sua revolta. Mas o que está acontecendo aqui não é sobre o que é justo ou injusto. É sobre como a lei está sendo aplicada. Vou registrar o que você me disse no depoimento. Isso pode ser importante para sua defesa. Agora, preciso que você me conte exatamente como esses medicamentos chegaram até você e quem os recebeu.
Edina respirou fundo e começou a falar.
— Alguns desses remédios eu tinha em casa, guardados de tratamentos antigos. Outros... eu conseguia no hospital. Pacientes deixavam caixas inteiras para trás, e eles iam ser descartados. Eu achava que era um desperdício. Os nomes das pessoas que eu ajudei... não sei se lembro de todos. Mas tinha um vizinho, o Seu Arnaldo, ele tem dores crônicas. A dona Célia, uma senhora que estava com crise de ansiedade... Essas pessoas estavam sofrendo, delegado. Eu não queria que elas sofressem mais.
O delegado anotava tudo com atenção, enquanto o escrivão digitava rapidamente no computador.
— E a senhora sabia que o compartilhamento desses medicamentos sem prescrição era ilegal? — perguntou ele, olhando diretamente para Edina.
Ela hesitou por um momento, abaixando o olhar.
— Não... Não sabia que era tão grave. Eu só pensei que, se estava ajudando alguém, não poderia ser errado.
O delegado fechou o caderno e se recostou na cadeira, olhando para Edina com um misto de empatia e exaustão.
— Vou ser sincero, Edina. Suas palavras mostram que você é uma pessoa de boa índole, mas a lei não diferencia isso. O que você fez, pela ótica legal, é crime. Vou registrar tudo no auto de prisão em flagrante, incluindo sua versão dos fatos. Isso será encaminhado ao Ministério Público. Agora, o que posso te aconselhar é que você procure um bom advogado para te representar.
Edina enxugou as lágrimas com a manga da blusa e ergueu os olhos para o delegado. — Eu vou. E espero que alguém veja que isso foi um erro. Eu só queria ajudar. O delegado fez um aceno para o escrivão, sinalizando que o depoimento havia terminado.
— Edina, você terá sua chance de explicar isso no tribunal. Até lá, mantenha a calma. É o melhor que pode fazer por você mesma.
Enquanto Edina era levada para a cela provisória, a única coisa que passava por sua cabeça era como provar que suas ações eram motivadas pela compaixão, e não pela ganância. Mas, naquele momento, a realidade da prisão era um peso que parecia insuportável. Após horas na cela provisória da delegacia, Edina ouviu passos ecoando no corredor. A porta de ferro se abriu, e um policial informou:
— Edina, seu advogado chegou. Ele foi nomeado pela Defensoria Pública para cuidar do seu caso. Venha comigo.
Edina levantou-se devagar, sentindo as pernas trêmulas. Não sabia o que esperar. Nunca tinha precisado de um advogado antes, e a ideia de alguém estranho defendendo sua liberdade a deixava ansiosa. Foi conduzida até uma pequena sala de reuniões com paredes brancas e uma mesa simples. Sentado do outro lado estava um homem jovem, com uma expressão séria, mas amigável. Vestia um terno discreto, já ligeiramente amassado, e segurava uma pasta repleta de documentos.
— Boa tarde, Edina. Meu nome é Lucas Antunes, sou advogado nomeado para representá-la neste caso — disse ele, estendendo a mão com firmeza. — Podemos conversar um pouco para eu entender melhor sua situação?
Edina apertou sua mão timidamente e se sentou, sentindo a tensão no ar. Lucas abriu a pasta e começou a folhear os documentos.
— Edina, eu li o auto de prisão em flagrante e as denúncias feitas contra você. Preciso que me conte, com todos os detalhes possíveis, o que aconteceu. Tudo o que você me disser será importante para sua defesa.
Ela respirou fundo, tentando organizar os pensamentos, e começou a falar.
— Eu sou técnica de enfermagem, doutor. Durante a pandemia, muitos vizinhos e pacientes me procuraram pedindo ajuda. Eles não tinham dinheiro para consultas ou remédios. Eu tinha alguns medicamentos controlados guardados em casa, outros eu conseguia no hospital, coisas que iam ser descartadas. Nunca vendi nada. Só queria ajudar quem estava sofrendo...
Lucas ouvia atentamente, tomando notas. Ele mantinha a expressão calma, mas seus olhos demonstravam foco.
— Entendo. Os medicamentos que você tinha foram encontrados durante a busca, correto? — perguntou ele, ajustando os óculos.
— Sim... estavam em uma caixa. Eu não escondi nada. Quando eles chegaram, eu expliquei. Mas ninguém quis me ouvir... Eles só me algemaram e disseram que eu estava cometendo tráfico de drogas.
Lucas fez uma pausa, olhando para Edina com empatia.
— Edina, sei que isso é difícil de ouvir, mas precisamos ser claros. Compartilhar medicamentos controlados, mesmo sem fins lucrativos, é considerado crime pela Lei 11.343/2006. A questão aqui será provar que você não tinha intenção de cometer tráfico. Vamos usar seu histórico profissional e sua relação com essas pessoas para argumentar que foi um ato de compaixão, não de comércio.
Edina abaixou a cabeça, lutando contra as lágrimas.
— Mas isso não parece suficiente... Eles estão me tratando como se eu fosse uma criminosa perigosa. Eu só queria ajudar. Como vou sair disso?
Lucas se inclinou levemente para frente, tentando tranquilizá-la.
— Eu sei que parece assustador agora, mas eu estou aqui para te ajudar. Vou preparar um pedido de liberdade provisória. Vamos usar seu trabalho como técnica de enfermagem, sua ficha limpa e os depoimentos das pessoas que você ajudou para construir a sua defesa. Esse caso não será fácil, mas eu acredito que temos argumentos fortes.
Edina levantou os olhos, buscando alguma esperança nas palavras do advogado.
— O senhor acha que eu posso sair dessa? Que posso provar que não sou o que eles dizem? Lucas sorriu de leve, tentando transmitir confiança.
— Edina, o caminho será longo, mas sim, você pode sair dessa. A verdade estará ao seu lado, e eu vou fazer tudo o que puder para garantir que o tribunal a veja como a pessoa que realmente é: alguém que quis ajudar, não prejudicar. Confie em mim, nós vamos lutar juntos.
Pela primeira vez desde sua prisão, Edina sentiu uma pequena fagulha de esperança. Não sabia o que o futuro reservava, mas naquele momento, soube que não estava mais sozinha. O dia do julgamento chegou com um ar de tensão que Edina sentiu desde o momento em que acordou na cela da penitenciária. Após meses aguardando o desfecho de seu caso, ela finalmente seria ouvida em um tribunal. Ao ser escoltada para o Fórum de Curitiba, Edina tentou controlar os pensamentos que martelavam sua mente. Vestindo um uniforme simples, com os cabelos presos, parecia bem menos a técnica de enfermagem dedicada e muito mais uma figura fragilizada pela prisão. Na sala do tribunal, o ambiente era opressor. De um lado, o Ministério Público, representado por uma promotora de expressão implacável. Do outro, Lucas Antunes, o advogado dativo que
havia se empenhado em construir uma defesa sólida. Atrás deles, algumas poucas pessoas assistiam ao julgamento, incluindo Verônica e Eidine, que vieram dar suporte a Edina. O juiz entrou na sala, e o julgamento teve início. O caso foi apresentado pela promotoria de forma contundente.
— Meritíssimo, estamos diante de um caso claro de tráfico de drogas, conforme previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006. A ré foi encontrada em posse de diversos medicamentos controlados, como ansiolíticos e analgésicos, além de depoimentos que comprovam que ela os distribuiu a terceiros. Ainda que tenha agido sem fins lucrativos, a lei não distingue a intenção do crime — disse a promotora, com uma firmeza que ecoou pela sala.
Lucas, em sua defesa, destacou a trajetória de Edina.
— Meritíssimo, esta é uma mulher sem antecedentes criminais, que dedicou sua vida a cuidar dos outros como técnica de enfermagem. Durante a pandemia, muitos de nós fomos colocados diante de situações extremas. Edina agiu movida pela compaixão, tentando aliviar o sofrimento de pessoas que não tinham acesso a tratamentos adequados. Não estamos falando de uma traficante. Estamos falando de uma pessoa que tentou ajudar e foi mal interpretada pela lei.
Edina foi chamada para prestar seu depoimento. Ao se levantar, suas mãos tremiam, mas sua voz foi firme.
— Eu nunca quis prejudicar ninguém. Sempre trabalhei cuidando de pessoas, e isso era o que eu estava tentando fazer. Sei que cometi um erro ao não pensar nas consequências, mas jamais imaginei que seria tratada como uma criminosa. Eu só queria ajudar... Isso não é tráfico, isso é cuidado.
Apesar das palavras emocionadas de Edina e da atuação cuidadosa de Lucas, a promotoria insistiu.
— A ré agiu de forma negligente e colocou em risco a saúde pública. Independentemente de sua intenção, os atos praticados configuram tráfico de substâncias controladas. Devemos pensar na aplicação da lei, não apenas em histórias comoventes.
O juiz, após ouvir todos os argumentos, pediu uma pausa para deliberar. Quando retornou, a sala ficou em silêncio.
— Após análise dos fatos, concluo que a ré, Edina da Silva, foi encontrada em flagrante violação do artigo 33 da Lei 11.343/2006. Reconheço que as circunstâncias indicam ausência de lucro e motivação altruísta, mas a legislação não permite flexibilização neste tipo de crime. Assim, condeno a ré à pena de nove anos de reclusão, a ser cumprida em regime fechado, devido à gravidade da infração.
As palavras pareceram esmagar o ar na sala. Edina sentiu as pernas fraquejarem, mas permaneceu de pé. Lucas, ao lado dela, colocou a mão em seu ombro em um gesto de apoio.
— Meritíssimo, diante da condenação, solicito que seja analisada a possibilidade de recorrer em liberdade, considerando o histórico da ré e a ausência de periculosidade — disse Lucas, em uma última tentativa.
O juiz balançou a cabeça.
— O pedido é indeferido. A ré deverá permanecer em custódia até a conclusão de eventual recurso.
Verônica começou a chorar baixinho na plateia, enquanto Eidine apertava os punhos, contendo sua indignação. Edina, por outro lado, apenas respirou fundo. Estava magoada, mas não surpresa. Sabia que a lei era rígida e que, apesar dos esforços de Lucas, ela enfrentava uma batalha quase impossível.
Ao sair da sala, Lucas caminhou ao lado dela.
— Edina, sei que isso não foi o que esperávamos, mas ainda temos opções. Vamos recorrer. Não vou desistir de lutar por você.
Ela o olhou, com os olhos cheios de lágrimas, mas uma expressão resignada.
— Obrigada, doutor. Eu só queria que eles enxergassem quem eu sou de verdade. Mas talvez isso nunca aconteça.
Edina foi levada de volta à penitenciária, onde o som das portas de ferro se fechando simbolizava mais do que apenas o final de um julgamento. Era o início de uma longa jornada para tentar provar sua inocência e, quem sabe, recuperar a liberdade que lhe fora tirada. Edina já havia perdido a noção exata dos dias desde que começara a cumprir sua pena. Seis meses haviam se passado, e a rotina na penitenciária era um ciclo interminável de tarefas repetitivas e reflexões dolorosas. Apesar de ser uma detenta discreta, conhecida por ajudar outras mulheres com pequenos cuidados, o peso da condenação ainda a esmagava diariamente e ali estava ela perdida em seus pensamentos. Naquela manhã, como em tantas outras, ela sentou-se em um canto da cela, Era seu momento de introspecção, uma tentativa de manter alguma conexão com o mundo lá fora. O som da rádio comunitária, que tocava ao fundo, era uma distração bem-vinda. Mas, de repente, a monotonia foi quebrada por uma notícia que fez seu coração disparar.
— "Foi aprovada uma nova lei que altera a classificação de medicamentos controlados e descriminaliza o compartilhamento não comercial de remédios em contextos de apoio familiar e de cuidado entre amigos. A mudança reflete o entendimento de que a intenção altruísta não deve ser equiparada ao tráfico de drogas."
Edina ergueu a cabeça, os olhos arregalados. Por um momento, ela achou que não havia ouvido direito. A notícia parecia boa demais para ser verdade. Um turbilhão de pensamentos invadiu sua mente, mas uma fagulha de esperança começou a crescer. Poucos dias depois, uma oficial apareceu na porta de sua cela.
— Edina, seu advogado está aqui para vê-la. Venha comigo.
Ela mal conseguia conter a ansiedade enquanto caminhava pelos corredores da penitenciária. As portas de ferro se fechavam atrás dela com um som pesado, mas, desta vez, não pareciam tão opressivas. Algo estava diferente.
Quando chegou à sala de visitas, encontrou Lucas sentado, segurando uma pasta de documentos. Ele tinha uma expressão séria, mas em seus olhos havia algo que Edina não via há tempos: esperança. Ela se aproximou rapidamente e sentou-se à sua frente.
— Doutor Lucas, o que está acontecendo? Eu ouvi a rádio... — começou ela, a voz cheia de expectativa.
Lucas respirou fundo e foi direto ao ponto.
— Edina, houve uma mudança na lei — disse ele. — A nova legislação descriminalizou exatamente a conduta pela qual você foi condenada. Você compartilhou medicamentos controlados com pessoas próximas, sem intenção de lucro, e isso agora não é mais considerado crime.
Edina arregalou os olhos, a incredulidade se misturando à emoção. Ela sentiu o peito apertar, as lágrimas começaram a brotar, e a voz saiu trêmula.
— O que isso significa para mim? — perguntou, quase sussurrando.
Lucas abriu a pasta e tirou um documento, colocando-o na mesa.
— Significa que o artigo 2º do Código Penal se aplica ao seu caso, Edina. Ele estabelece que "ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória." Isso é o princípio da abolitio criminis. Em outras palavras, sua pena deve ser extinta imediatamente.
Edina levou as mãos ao rosto, sentindo uma mistura de alívio e descrença. As lágrimas escorriam sem controle, mas, desta vez, não eram de tristeza. Lucas sorriu levemente e continuou:
— Já protocolei o pedido de extinção da pena. O juiz deve analisá-lo nas próximas horas, mas posso dizer com quase total certeza: você será libertada muito em breve.
— Eu... eu nem sei o que dizer... — balbuciou Edina, olhando para ele. — Eu achei que nunca teria uma segunda chance, que nunca iriam me ouvir.
Lucas inclinou-se para frente, falando com firmeza.
— Edina, sua história sempre foi uma injustiça. A mudança na lei reconhece isso, e agora é hora de recomeçar. Você tem uma vida inteira pela frente, e minha missão é garantir que você possa retomá-la o mais rápido possível.
Edina assentiu, ainda tentando absorver tudo o que estava acontecendo. Depois de tanto sofrimento, finalmente havia uma luz no fim do túnel. Quando retornou à cela, sentiu uma paz que não experimentava há meses. Pela primeira vez, olhou para as grades e as paredes com a certeza de que em breve as deixaria para trás. A mudança na lei era mais do que um ato jurídico; era uma nova oportunidade de vida.
Alguns dias após a última visita de Lucas, seu advogado, Edina estava sentada em sua cela, olhando para o pequeno feixe de luz que entrava pela janela gradeada. Ela não conseguia evitar pensar nas palavras dele. A nova lei havia mudado tudo, e Lucas estava confiante de que sua liberdade era apenas uma questão de tempo. Mesmo assim, a espera era angustiante. De repente, o som de passos firmes ecoou pelo corredor. A oficial parou diante de sua cela, com um papel nas mãos e um leve sorriso no rosto.
— Edina, prepare suas coisas. Você vai deixar a prisão hoje.
Edina sentiu o chão desaparecer por um instante. Ela piscou, tentando processar o que acabara de ouvir.
— O quê? — perguntou, quase sussurrando. — Eu... eu vou sair?
A oficial confirmou com um aceno de cabeça.
— Sim, o juiz aprovou a extinção da sua pena com base na nova lei. Seu advogado já está aqui para buscá-la.
O coração de Edina disparou, e lágrimas começaram a encher seus olhos. Depois de seis meses presa, finalmente havia chegado o momento que ela quase não ousava imaginar. Tremendo, pegou sua pequena sacola com os poucos pertences que tinha. Ao sair da cela, deu uma última olhada para trás. Apesar de todo o sofrimento, aquele lugar também a havia transformado de maneiras que ela ainda não compreendia.
Enquanto caminhava pelos corredores, sentia os olhares das outras detentas. Algumas a incentivavam com sorrisos e gestos de apoio, enquanto outras pareciam abatidas, talvez desejando estar no lugar dela. Ao atravessar o portão principal, o ar fresco bateu em seu rosto. O céu estava aberto, e a luz do sol parecia mais brilhante do que ela se lembrava. Do lado de fora, Lucas estava esperando, com a mesma expressão de seriedade misturada com alívio.
— Bem-vinda à liberdade, Edina — disse ele, enquanto se aproximava.
Ela não conseguiu conter as lágrimas. Abandonando qualquer formalidade, jogou a sacola no chão e o abraçou, como se aquele gesto pudesse expressar toda a gratidão que sentia.
— Eu nem sei como agradecer, doutor. Você nunca desistiu de mim... mesmo quando eu achava que tudo estava perdido.
Lucas sorriu, colocando a mão no ombro dela.
— Não foi só minha luta, Edina. Essa mudança na lei corrigiu uma injustiça que nunca deveria ter acontecido. Agora é hora de você recomeçar.
Enquanto caminhava ao lado de Lucas em direção ao carro, Edina não podia deixar de pensar em tudo o que havia vivido nos últimos meses. A aplicação do artigo 2º do Código Penal havia mudado sua vida. Era um princípio simples, mas poderoso, que reconhecia o direito de não ser punida por algo que a sociedade agora entendia como um erro. "Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória." Essas palavras ressoavam em sua mente como um lembrete de que a lei, embora rígida, também podia ser corrigida. A abolitio criminis não era apenas uma questão técnica; era uma forma de justiça retroativa, uma maneira de reconhecer que o Direito precisava acompanhar as transformações da sociedade.
— Lucas, eu não consigo parar de pensar... O artigo 2º me deu a liberdade, mas quantas pessoas ainda estão presas por leis que não fazem sentido hoje? — perguntou, olhando para ele.
Lucas suspirou, assentindo.
— Muitas, infelizmente. É por isso que o Direito Penal deve ser revisado constantemente. A mudança que libertou você é uma prova de que o sistema pode evoluir, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.
Edina sentiu um misto de alívio e responsabilidade. Sua história não era apenas sobre ela. Era sobre tantas outras pessoas que ainda enfrentavam julgamentos implacáveis, mesmo sem intenção de cometer crimes. Ao chegar em casa, encontrou Verônica e Eidine esperando na porta. O abraço deles foi caloroso, cheio de lágrimas e sorrisos. Pela primeira vez em meses, Edina sentiu-se realmente livre. Mas, naquela noite, enquanto olhava para o céu estrelado, prometeu a si mesma que usaria sua experiência para ajudar outras pessoas. Ela queria estudar, entender melhor o Direito, e talvez até trabalhar com Lucas no futuro, lutando para que outras injustiças fossem corrigidas. A liberdade de Edina era mais do que física; era a chance de recomeçar e dar um novo significado à sua vida. E o artigo 2º do Código Penal, que antes era apenas uma norma distante, agora era um símbolo de esperança e justiça.


