Código Penal Comentado Art. 4°

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DIREITO PENAL COMENTADO

Livancler de Oliveira

8/25/20255 min read

a black and white photo of a horse and carriage on a building
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Art. 4º - Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.
A lei brasileira, salvo disposição em contrário, aplica-se ao crime cometido no território nacional.

Este artigo define quando e onde um crime acontece. O "quando" não é a hora em que a vítima sente o efeito ou o prejuízo é descoberto, mas sim o exato instante em que o autor pratica a ação criminosa. O "onde" é o local onde essa ação foi realizada. Se um ato que configura crime foi praticado no Brasil, mesmo que o resultado (o prejuízo) aconteça em outro país, a Justiça brasileira tem competência para julgar o caso.

Por exemplo:


Imagine que alguém, estando no Brasil, envie um e-mail fraudulento para uma vítima que está na Argentina. O crime de estelionato é considerado cometido no momento e no local de onde o e-mail foi enviado (Brasil), e não quando a vítima na Argentina cai no golpe ou onde ela perde o dinheiro. Portanto, a lei penal brasileira é que será aplicada.

Esse princípio é crucial para evitar que criminosos escapem da Justiça usando fronteiras internacionais e para definir qual lei será usada no julgamento.

A Fraude Internacional

O sol batia forte sobre Brasília, contrastando com o ar gelado do moderno escritório onde Marina trabalhava. Com 30 anos, cabelos castanhos presos em um coque impecável e óculos de grau que escondiam um olhar perspicaz, ela era uma perita em direito penal internacional, uma das melhores da sua geração. Enquanto analisava um complexo caso de extradição, seu celular vibrou insistentemente. Era seu primo, Diego, dono de uma pequena importadora, com a voz à beira do pânico.

“Marina, é um desastre! Bloquearam todos os meus assets nos EUA. Dizem que eu cometi um crime aqui, mas eu juro que não fiz nada!”

Marina baixou a caneta. “Calma, Diego. Respire e me conte tudo, do começo.”

A história era complexa. Diego fechara um contrato para comprar uma partida de celulares de um fornecedor em Miami. As negociações, e-mails, assinatura do contrato e o primeiro pagamento – tudo foi feito por ele, daqui do seu escritório em Brasília. A contraparte americana, porém, era uma empresa-fantasma. Assim que o pagamento de USD 50.000 foi confirmado, eles sumiram. Os celulares nunca existiram. Os americanos, ao descobrirem o golpe, moveram uma ação e conseguiram bloquear os bens de Diego nos Estados Unidos, alegando que o crime de wire fraud (fraude eletrônica) havia sido consumado lá.

“Eles dizem que o crime aconteceu em Miami porque foi lá que o dinheiro sumiu. Mas como isso é possível, Marina? Eu nunca pus os pés em Miami! Tudo foi feito daqui!”

Marina sorriu, um brilho de antecipação nos olhos. “Diego, acalme-se. Eles estão cometendo um erro clássico. Eles estão confundindo o momento do resultado com o momento do crime. Isso é puro Artigo 4º do CP.”

Enquanto Marina explicava os fundamentos do artigo ao primo, do outro lado da cidade, o Delegado Augusto Silva, um homem pragmático e experiente da Polícia Federal, recebia um ofício do FBI notificando sobre o caso e solicitando cooperação, mas sob a premissa de que a competência principal era americana.

“Mais um que acha que fronteira física é fronteira jurídica”, murmurou o delegado, esfregando os olhos. Ele conhecia o Art. 4º como a palma da sua mão.

Os dois caminhos se cruzaram na delegacia da PF no dia seguinte. Marina agendara uma reunião para apresentar a defesa de Diego.

“Delegado Silva, obrigada por nos receber”, disse Marina, profissional como sempre, com Diego nervoso ao seu lado.

“Doutora Marina, adianto que o caso é complicado. O prejuízo foi sofrido lá, o dinheiro se perdeu no sistema financeiro americano. O FBI alega competência.”

“Com todo o respeito, delegado, o FBI está enganado. E o senhor sabe disso”, rebateu Marina, abrando sua pasta. “O Art. 4º do Código Penal é claro: o crime é considerado praticado no momento da ação ou omissão, e não do resultado. Onde estava meu cliente quando praticou a ação que deu origem ao golpe?”

“Aqui. Em Brasília”, respondeu o delegado, já adiantando o raciocínio.

“Exatamente! A ação criminosa – no caso, a conduta dolosa de enviar propostas fraudulentas e receber um pagamento sob falsos pretextos – foi toda praticada daqui. Ele apertou o botão ‘enviar’ do seu computador em solo brasileiro. O fato de o resultado – o prejuízo – ter ocorrido em Miami é irrelevante para definir a competência. A lei aplicável é a brasileira.”

O delegado Silva inclinou-se para frente, interessado. “E quanto ao princípio da territorialidade? O crime foi cometido no território nacional?”

“Foi!”, enfatizou Marina. “O art. 4º complementa o princípio da territorialidade. A lei brasileira se aplica ao crime cometido no todo ou em parte no território nacional. A conduta inicial, que é o núcleo do crime, aconteceu aqui. Portanto, a competência para investigar e processar este crime é da Justiça Brasileira. O que temos é um caso de cooperação internacional, onde o FBI deve nos auxiliar, e não o contrário.”

Diego olhava para a prima, impressionado. Era como assistir a uma partida de xadrez onde ela, com uma só jogada, virou o jogo.

O delegado permaneceu em silêncio por um momento, analisando o raciocínio. Ele então pegou o ofício do FBI e o guardou em uma gaveta.

“A doutora está absolutamente correta. Eles estão focando onde a flecha caiu, e não de onde ela foi disparada. O arco estava firmemente plantado em solo brasileiro.” Ele olhou para Diego. “Seu problema, jovem, é com a Justiça brasileira. Nós abriremos um inquérito para investigar o estelionato praticado daqui. O bloqueio de bens nos EUA foi uma medida cautelar equivocada, pois partiu de uma premissa jurídica errada. Com a abertura da investigação aqui, podemos solicitar o desbloqueio.”

Um ano depois, o caso foi resolvido. A Justiça brasileira, baseando-se no Art. 4º, assumiu a competência. A PF, em cooperação com o FBI, rastreou os criminosos – que, ironicamente, operavam da Europa. O dinheiro de Diego foi recuperado e devolvido.

Em uma cerimônia na embaixada brasileira, o Delegado Silva, que se aposentara, fez um discurso para novos agentes.

“Hoje, gostaria de falar sobre um artigo simples, mas poderoso: o Art. 4º do CP”, começou. “Ele nos ensina que o crime tem um endereço certo: o local da ação. Não importa se o resultado é no outro lado do mundo. Se um toque de fraude foi dado daqui, a responsabilidade é daqui. Isso não é tecnicismo jurídico; é a soberania da nossa lei em ação. É garantir que ninguém use a globalização como escudo para cometer crimes contra os nossos cidadãos, a partir do nosso território.”

Marina, na plateia, assentiu com um sorriso discreto. Para ela, aquele não era apenas o fim de um caso, mas a confirmação de que o direito, quando aplicado com precisão, é a melhor ferramenta para construir pontes de justiça entre as nações, sempre respeitando de onde partiu o primeiro e decisivo passo.