Sombras de uma lei esquecida
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DIREITO PENAL COMENTADO
Livancler de Oliveira
8/24/20259 min read
Sombras de uma Lei Esquecida
O sol estava se pondo sobre Ponta Grossa, tingindo o céu de um vermelho profundo. A cidade, abafada pelo calor sufocante, parecia em suspenso. Jenifer caminhava apressada pelas ruas estreitas, sentindo o suor escorrer pela nuca. Seus passos eram rápidos, mas seu olhar estava distante. Desde criança, carregava o hábito de andar sem realmente prestar atenção no caminho, um reflexo de uma vida cheia de inquietações. Naquela manhã, Jenifer havia recebido uma mensagem inesperada no celular. Era de André, o amigo que não via há meses. Ele pedia para encontrá-la em um bar discreto no centro da cidade.
"Precisamos conversar. É importante." — dizia a mensagem.
Jhenifer hesitou por um momento. Não sabia ao certo o que André queria, mas algo em seu tom parecia urgente. Apesar de tudo o que haviam passado juntos, os últimos meses haviam criado uma distância desconfortável entre eles. Ainda assim, ela decidiu ir.
Ao virar a esquina, entrou em um bar quase escondido entre os prédios antigos. O lugar estava mergulhado em uma penumbra acolhedora, mas o ar quente e pesado tornava o ambiente opressivo. Ela pediu um whisky e se sentou em um canto, esperando André chegar.
Pouco depois, ele entrou no bar. Seus olhos fundos e inquietos procuravam algo — ou alguém. Ao avistar Jenifer, ele se aproximou, ajustando a jaqueta velha e sentando-se diante dela. Era difícil reconhecer no homem hesitante o amigo confiante que ela conhecera anos atrás.
André e Jenifer tinham uma longa história juntos. Conheceram-se na adolescência, quando frequentavam o mesmo colégio em bairros próximos. A amizade surgiu de um projeto de talentos organizado pela escola, onde Jenifer apresentou suas habilidades como DJ pela primeira vez e André ofereceu-se para ajudá-la com os equipamentos. Desde então, ele se tornou o braço direito dela, alguém que estava presente tanto nos dias de glória quanto nos momentos de dificuldade.
Durante a pandemia, a relação entre eles começou a mudar. Enquanto Jenifer mergulhava na organização das festas clandestinas, André assumia um papel de apoio, mas com crescente desconforto. Ele sempre fora metódico e cauteloso, e as festas eram um risco que ele sabia
que poderia sair caro. Quando começaram os rumores sobre investigações e multas, André tentou convencê-la a parar, mas ela estava determinada.
Alguns meses após o fim das festas, André começou a ouvir murmúrios nos círculos que frequentava. Um conhecido que trabalhava em um cartório mencionou, em tom casual, que Jenifer estava sendo investigada por envolvimento em atividades ilegais durante a pandemia. O choque inicial foi substituído pelo medo. Ele sabia que os atos de Jenifer poderiam ter consequências graves e, apesar do afastamento entre eles, sentiu-se compelido a avisá-la.
Agora, sentado em frente a ela no bar, André parecia tenso. Ele começou a falar, tentando esconder o nervosismo.
— Você veio — disse Jenifer, recostando-se na cadeira e cruzando os braços. Seu tom era direto, mas havia uma ponta de cansaço na voz. — O que é tão importante, André?
Ele mexeu na jaqueta, tentando disfarçar o nervosismo. Seus olhos não conseguiam encontrar os dela de imediato.
— É sério, Jenifer. Não tinha como eu ignorar isso. — Ele parou por um momento, respirando fundo, e finalmente a encarou. — Você está sendo investigada. Não é boato. É oficial.
Jenifer arqueou uma sobrancelha, claramente surpresa. Apesar disso, tentou manter a calma.
— Investigada? Por quê? As festas? — perguntou ela, com um misto de incredulidade e impaciência. — Isso foi há anos, André. A pandemia acabou. Eles não podem fazer nada agora.
André balançou a cabeça, a expressão endurecendo.
— Não é assim que funciona. Eles podem e vão fazer algo. Você conhece o Art. 3º do Código Penal? — Ele inclinou-se para frente, baixando a voz como se estivesse revelando um segredo perigoso. — "A lei excepcional ou temporária, mesmo após o fim de sua vigência, ainda se aplica aos atos cometidos durante sua duração." Isso significa que tudo o que você fez durante as restrições ainda está em jogo. Eles têm provas, Jenifer. Fotos, depoimentos... e seu nome está em destaque.
Ela permaneceu em silêncio por um momento, processando o que acabara de ouvir. Finalmente, soltou um suspiro irritado e respondeu.
— Eu não fiz nada errado. Eu só queria ajudar as pessoas. Elas estavam presas em casa, enlouquecendo de medo. Dei a elas um escape. Isso não pode ser considerado um crime.
André fechou os olhos brevemente, como se estivesse lutando contra a frustração.
— Eu sei que você achava que estava ajudando, mas, Jenifer, as consequências foram graves. Você quebrou regras que existiam para proteger vidas. E agora eles estão dizendo que pessoas morreram depois de ir às festas. Isso é sério. Eles vão tentar te culpar por isso.
Jenifer se inclinou para frente, os olhos fixos nos dele. Sua voz agora estava mais baixa, mas firme.
— E o que você sugere que eu faça, André? Que eu fuja? Que eu me esconda? — Ela balançou a cabeça, exasperada. — Eu não vou viver com medo de algo que não fiz.
André suspirou profundamente, passando as mãos pelo cabelo.
— Não estou dizendo para fugir. Estou dizendo para se preparar. Você precisa de um advogado, precisa começar a pensar em como vai lidar com isso. Não dá para ignorar, Jenifer. Eles vão vir atrás de você, e quando vierem, você precisa estar pronta.
Ela olhou para ele por um longo momento, as mãos fechadas em punhos sobre a mesa. Apesar de sua teimosia, sabia que ele tinha razão.
— Obrigada por me avisar — disse ela, finalmente, a voz mais suave. — Eu sei que você não precisava fazer isso.
André deu um pequeno sorriso, mas seu semblante ainda estava carregado.
— Você sempre foi teimosa, mas eu nunca deixaria você enfrentar isso sozinha, Jenifer. Por mais que eu tenha ficado longe, eu ainda me importo.
Ela assentiu, e pela primeira vez desde que se sentaram, uma leve tensão pareceu se dissipar.
Depois de deixar o bar, Jenifer voltou para casa. O caminho parecia mais longo naquela noite, e as palavras de André martelavam em sua mente como uma batida constante. Ela tentava ignorar o nervosismo crescente, repetindo para si mesma que tudo aquilo era exagero. "Eles não vão atrás de mim", pensava. "Isso ficou no passado."
Ao chegar em casa, largou a bolsa no sofá e foi direto para a cozinha preparar um chá. Tentava se convencer de que nada sairia do controle, mas o nó no estômago não desaparecia. Sentou se à mesa da sala, olhando para as paredes vazias enquanto as lembranças das festas clandestinas tomavam conta de seus pensamentos. Música alta, luzes piscando, pessoas rindo e dançando. Para ela, tudo aquilo parecia tão distante, quase como se tivesse acontecido em outra vida.
Os dias seguintes foram relativamente tranquilos. Jenifer manteve sua rotina habitual, dividindo seu tempo entre pequenos trabalhos como DJ e momentos de descanso em casa. Ela tentava continuar vivendo como se nada tivesse mudado, mas uma sombra de inquietação parecia segui-la aonde quer que fosse. Mesmo assim, ela insistia em acreditar que André estava exagerando. "Se fosse tão sério assim, já teriam me procurado", pensava.
Na manhã do terceiro dia, enquanto lavava a louça, ouviu uma batida firme na porta. O som seco e decidido fez com que ela largasse o prato que segurava, enxugando as mãos apressadamente antes de atender.
Ao abrir, encontrou um homem de terno, segurando um envelope em uma das mãos. Ele tinha uma expressão neutra, quase fria, e falava com profissionalismo excessivo.
— Jenifer Alves? — perguntou ele.
— Sim, sou eu. — respondeu, tentando parecer tranquila, embora sentisse um aperto no peito. O homem estendeu o envelope para ela.
— Você foi intimada a comparecer à delegacia de polícia civil na próxima terça-feira, às 9h, para prestar esclarecimentos. Certifique-se de levar seus documentos. — Sem esperar por uma resposta, virou-se e foi embora.
Jenifer fechou a porta lentamente, com o envelope ainda nas mãos. Ficou parada por alguns segundos, olhando para o papel como se ele pudesse explodir a qualquer momento. Finalmente, respirou fundo, abriu o envelope e leu as palavras que confirmavam o que André havia dito. Era oficial: ela era investigada.
Sentou-se à mesa com o papel em mãos. O ambiente ao seu redor parecia mais silencioso do que o normal, quase opressor. O nó no estômago havia se transformado em um peso ainda maior, que pressionava seu peito. Ela sabia que este era o início de algo que não podia evitar. As festas que um dia trouxeram alegria agora a colocavam no centro de uma tempestade.
Na terça-feira de manhã, Jenifer estava diante do espelho, ajustando os cabelos enquanto tentava se preparar para o que a aguardava. O relógio marcava 8h30, mas ela já estava pronta há pelo menos uma hora. Não havia dormido bem na noite anterior, e seu rosto mostrava o cansaço acumulado. Vestiu-se de forma simples, mas cuidou para parecer arrumada o suficiente para causar uma boa impressão. Respirou fundo antes de sair de casa.
Ao chegar à delegacia de polícia civil, foi conduzida por um policial até a sala do delegado Elder. O ambiente exalava formalidade e autoridade. A iluminação amarelada das lâmpadas tornava o lugar mais pesado, quase sufocante. Ela respirou fundo antes de entrar.
Elder, o delegado de polícia civil responsável pela investigação, era um homem alto, de rosto marcado por cicatrizes e um olhar que parecia atravessar qualquer um. Ele tinha o hábito de manter uma expressão impenetrável, mas seus olhos diziam que estava sempre dois passos à frente. Vestia um terno simples, mas bem ajustado, e segurava uma caneta como se estivesse pronto para anotar cada palavra que ouvisse.
— Jenifer, que bom que veio — disse Elder, com um sorriso frio que não alcançava os olhos. Ele gesticulou para que ela se sentasse na cadeira à sua frente.
Jenifer hesitou por um momento, mas decidiu não demonstrar fraqueza. Sentou-se ereta, tentando manter a postura firme, embora suas mãos estivessem apertadas no colo.
— Precisamos conversar sobre o que você fez — continuou Elder, enquanto abria uma pasta cheia de papéis.
Ela engoliu em seco antes de responder.
— O que exatamente você acha que eu fiz, delegado? — perguntou, tentando soar segura, mas sua voz traía um leve tremor.
Elder inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos na mesa. Ele parecia estar estudando cada detalhe de sua expressão.
— Você sabe do que estou falando, Jenifer. Durante a pandemia, quando todos estavam lutando para sobreviver, você organizou festas clandestinas, desafiando as restrições impostas por lei. — Sua voz era calma, mas carregada de autoridade. — Você quebrou regras criadas para proteger vidas. Como resultado, pessoas foram infectadas. Algumas delas não sobreviveram.
Jenifer sentiu um frio na espinha. As palavras de Elder eram cortantes, e mesmo sabendo que ele estava ali para interrogá-la, não estava preparada para ouvir aquilo tão diretamente.
— Eu não fiz isso para machucar ninguém. — Sua voz saiu mais baixa do que pretendia. — As pessoas estavam sufocadas, presas em casa, vivendo com medo. Eu só queria dar a elas um momento de liberdade, uma forma de esquecer o que estava acontecendo lá fora.
Elder arqueou uma sobrancelha, como se estivesse avaliando sua justificativa.
— Liberdade? — Ele soltou uma risada seca. — Você chama de liberdade o que custou vidas? A pandemia não foi um jogo, Jenifer. As regras existiam por um motivo. E mesmo que sua intenção não fosse machucar ninguém, suas ações tiveram consequências.
Ele abriu a pasta e espalhou algumas fotos sobre a mesa. Eram imagens de festas lotadas, com pessoas dançando e bebendo em ambientes fechados. Em várias delas, Jenifer podia ser vista no centro da multidão, comandando o som.
— Essas festas aconteceram no auge das restrições. Aglomerações eram proibidas. E aqui está você, ignorando tudo isso. Não importa qual era a sua intenção, o que importa é o resultado. — Ele apontou para as fotos. — Temos provas suficientes para ligar essas festas a surtos de COVID-19 na cidade. Algumas pessoas que frequentaram esses eventos não sobreviveram.
Jenifer desviou o olhar, incapaz de encarar as imagens. Ela sabia que as festas haviam saído do controle, mas nunca imaginara que seriam ligadas a algo tão grave.
— Eu não sabia... — começou ela, mas Elder a interrompeu.
— Não sabia ou não queria saber? — perguntou ele, estreitando os olhos. — Você escolheu ignorar as regras. Agora está na hora de enfrentar as consequências.
Ela sentiu um nó na garganta, mas tentou manter a compostura.
— Eu fiz o que achava certo naquele momento. Se tivesse a chance de voltar atrás, faria diferente. Mas não posso mudar o que aconteceu. — Sua voz tremia, mas havia sinceridade em suas palavras.
Elder a observou por alguns segundos antes de se recostar na cadeira.
—Arrependimento não apaga as consequências, Jenifer. Você será responsabilizada por suas ações, como qualquer outra pessoa que violou a lei durante aquele período. É assim que funciona.
Jenifer abaixou a cabeça, o peso das palavras dele parecendo esmagá-la. Sabia que não tinha mais como escapar. A realidade finalmente havia se imposto, e agora tudo o que podia fazer era enfrentar o que estava por vir.


